
A cada nova rodada de juros altos ou turbulência política, ressurgem as previsões de colapso iminente do mercado imobiliário brasileiro. “Desta vez a bolha vai estourar”, repetem vozes que já diziam o mesmo desde o Collor (para quem puder lembrar) e o subprime (para quem nasceu depois). O curioso é que, governo após governo, crise após crise, o setor segue resiliente, provando que nem sempre o apocalipse é uma boa aposta de mercado.
A explicação para essa resistência tem duas camadas. A primeira, estrutural, está na demografia brasileira — aquilo que os economistas chamam de bônus demográfico. A segunda, mais sutil, está na capacidade de adaptação dos empresários, incorporadoras e corretores do setor, que atravessaram décadas de instabilidade econômica e desenvolveram uma resiliência darwiniana.
A janela que ainda não fechou
Bônus demográfico é o período em que a população em idade ativa — aqueles entre 15 e 64 anos que trabalham, produzem renda e formam famílias — cresce mais rápido do que a população dependente, formada por crianças e idosos. Para o mercado imobiliário, essa fase é uma janela de oportunidade única: pessoas em idade ativa compram casas, alugam, trocam de imóvel conforme a família cresce, investem em segunda residência.
Pense no bônus demográfico como um transatlântico. Ele pode ter desligado os motores, mas a inércia da sua massa o carrega por milhas. O Brasil está nesse momento de inércia demográfica. Segundo o IBGE, a população total para de crescer em 2041, atingindo o pico de 220,4 milhões de habitantes. Mas até lá o país ainda colhe os frutos dessa massa em movimento. A geração nascida entre os anos 1980 e 1990 está hoje na faixa dos 35 a 45 anos, justamente a idade em que se estabiliza a carreira e surge o poder de compra para o financiamento imobiliário de maior valor.
O número de domicílios no Brasil saltou 34% entre 2010 e 2022, passando de 67,5 milhões para 90,7 milhões, segundo o IBGE. Esse crescimento não vem apenas de mais gente, mas da redução do tamanho médio das famílias — de 3,3 para 2,8 pessoas por domicílio. Mesmo com natalidade em queda, formam-se mais lares. Some-se ainda o déficit habitacional de 6,2 milhões de moradias (segundo a Fundação João Pinheiro), composto majoritariamente por coabitação forçada, ônus excessivo de aluguel e moradia precária. Isso deixa claro que há uma demanda reprimida estrutural de sobra.
Quando a demografia vira contra
Para dimensionar o privilégio brasileiro, vale olhar para lugares onde a demografia virou adversária. O Japão, após a bolha estourar nos anos 1990, não conseguiu reanimar os preços. Hoje, 13,8% das residências estão vazias — cerca de 9 milhões de imóveis. O Instituto de Pesquisa Nomura prevê que esse número chegue a 30% até 2033. Fora de Tóquio, casas são vendidas por valores simbólicos.
A China acumula entre 65 e 90 milhões de imóveis vazios. Com o declínio populacional iniciado em 2022 — e a perspectiva de perda de 200 milhões de pessoas até 2050, segundo a ONU —, os preços caíram 4,8% em 2024, conforme a consultoria E-House. O problema chinês não é apenas financeiro, é uma contagem regressiva demográfica. Detroit perdeu dois terços de sua população entre 1950 e 2020, deixando 80 mil casas abandonadas.
Do outro lado da moeda
Enquanto alguns envelhecem, outros surfam a onda. A Índia tem 69% da população com menos de 40 anos — a maior proporção do mundo, segundo a Bloomberg Intelligence. O mercado imobiliário cresce 9,2% ao ano, com preços (entre registrados e projetados 2023-2028) subindo 30% em cidades como Gurugram (IBEF/Mordor). A Nigéria, com 232 milhões de habitantes e mais de 63% abaixo de 24 anos, caminha para 390 milhões até 2050, segundo a ONU. O setor imobiliário nigeriano cresce ano a ano.
A resiliência brasileira
Mas a demografia, sozinha, não explica tudo. O diferencial brasileiro está na capacidade de adaptação do setor. Quem trabalha no mercado imobiliário há décadas forjou sua experiência atravessando os choques do petróleo, hiperinflação, confisco do Collor, Lei do Inquilinato de 1991, crise do subprime e Covid-19. A cada crise, incorporadoras ajustaram portfólios, corretores reinventaram prospecção, construtoras revisaram custos. O setor aprendeu a operar na incerteza.
Em 2024, as vendas cresceram 20,9%, os lançamentos subiram 18,6%, e a valorização média foi a maior em 21 anos, segundo a CBIC e o FipeZAP. Mesmo com a Selic entre 10,5% e 12,25% em 2024, o setor manteve fôlego. A urbanização de 87% da população, segundo o IBGE, sustenta a mobilidade constante entre bairros e regiões.
O recado está dado
Entre 2033 e 2037, a razão de dependência volta a subir. O Brasil entrará no território do envelhecimento acelerado. O mercado não desaparecerá, mas perderá aquela demanda automática que hoje funciona como colchão contra crises.
O Brasil ainda reúne um trunfo demográfico que muitos países já perderam, aliado a empresários que aprenderam a fazer negócio em meio ao furacão. Enquanto essa combinação persistir, o mercado imobiliário brasileiro tende a seguir com “vento de cauda” — aquela força que empurra o avião na direção certa, exigindo menos combustível.
Para que essa vantagem se traduza em menos déficit habitacional e mais moradia de qualidade, a política urbana precisa equilibrar proteção ambiental, áreas verdes e qualidade de vida com regras claras, planos diretores atualizados e políticas de Estado que estimulem investimento, geração de emprego e ampliem a oferta de imóveis em cidades onde o aluguel e o metro quadrado já pesam cada vez mais no bolso das famílias.

