
Programas urbanos que nasceram com o discurso de “trazer moradia de volta aos centros” acabaram turbinando um produto que o mercado conhece muito bem: studios compactos, líquidos, com apelo de renda via curta temporada. A cena se repete em São Paulo e no Rio de Janeiro.
No papel, os incentivos — fiscais e urbanísticos — eram a ponte para habitação acessível; na prática, abriram uma avenida para investimentos voltados ao aluguel por temporada, com valores por metro quadrado que afastam justamente quem mais precisa morar perto de emprego e transporte.
São Paulo e os incentivos habitacionais
Em São Paulo, a prefeitura reuniu isenções e flexibilizações para viabilizar retrofit e produção residencial no centro — via Requalifica Centro (conjunto de incentivos de São Paulo para estimular moradia e usos mistos em prédios ociosos do centro) e PIU Setor Central (Projeto de Intervenção Urbana).
Só que, enquanto os incentivos avançavam, vieram à tona casos de “fake HIS (Habitação de Interesse Social) /HMP (Habitação de Mercado Popular)”. Cartórios passaram a incluir alertas na matrícula de imóveis sob suspeita, o Ministério Público acionou a Justiça e o município aplicou multas milionárias.
Tudo isso num ambiente em que proliferam studios vendidos a investidores com promessa de diárias. Quando a lei não amarra tipologia, metragem e destinação, o produto mais rentável ocupa o espaço.
O caso do Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, o Reviver Centro (programa do Rio para requalificar o Centro, estimulando retrofit, moradia e usos mistos com benefícios urbanísticos e fiscais) e a fase Pró-APAC (fase do Reviver voltada a imóveis em Área de Proteção do Ambiente Cultural) seguiram trilha parecida: incentivos edilícios e fiscais, além de subsídio por metro quadrado acima de R$ 3 mil para recuperar imóveis nas áreas históricas.
O balanço oficial fala em dezenas de licenças e mais de 4 mil unidades aprovadas no perímetro — sinais de tração do programa. Ao mesmo tempo, o ecossistema de curta temporada cresce, pressionando o aluguel de longo prazo e redesenhando a ocupação nos bairros centrais.
Padrões revelados
Colocadas lado a lado, as duas experiências revelam um padrão:
Benefício público amplo, contrapartida frouxa. Isenções, bônus e facilidades de licenciamento não foram amarrados a um mix mínimo de metragens ou a vínculos de uso que blindassem o objetivo social. Resultado: o “produto investidor” prevaleceu.
Centro como ativo financeiro. A combinação de localização estratégica, ticket unitário “acessível ao investidor” e demanda turística transforma studios em ativos de alta rotatividade — mais lucrativos na diária que no aluguel tradicional.
Deslocamento do público-alvo. Em SP, alertas cartoriais e sanções mostram captura dos benefícios por quem não se encaixa nas faixas de renda. No Rio, o desenho pró-investimento e o subsídio empurram o Centro para um nicho de curta temporada, esvaziando a promessa de moradia popular no núcleo histórico.
Efeitos urbanos
O efeito urbano é conhecido: gentrificação e exclusão territorial. Sem lastro em contratos de longo prazo, as áreas centrais passam a operar pelo termômetro da diária e da sazonalidade — e o trabalhador que precisa morar perto segue longe, gastando mais tempo e dinheiro para acessar a cidade. É o paradoxo da revitalização que anima fachadas, mas expulsa moradores potenciais.
Possíveis saídas
Há saídas — e elas não pedem “desligar” o investimento privado. Bastaria recalibrar o pacto: atrelar benefício a entrega social comprovável (metas de metragem e tipologia que caibam famílias, cota de aluguel de longo prazo por alguns anos), criar regras explícitas para curta temporada em empreendimentos subsidiados (quando permitido, sob licença específica e retorno fiscal para habitação) e publicar dados transparentes sobre o destino das unidades.
A pergunta que fica — e que deveria guiar o próximo ciclo de revisões — é direta: afinal, qual é a real intenção dessas legislações quando são desenhadas? Se for inclusão, que as regras sejam escritas para resistir à captura; se for apenas dinamizar o mercado, que isso fique claro para a sociedade que paga a conta.